É comum caminharmos pela
vida cheios de certezas a respeito dos mais variados assuntos, mas,
concretamente, só temos uma certeza, absoluta, inquestionável, imutável e
inegociável: vamos morrer. Tudo o mais são suposições, hipóteses, efêmeras
possibilidades. Cultivar essa certeza única não significa assumir uma postura
mórbida, negativa, pessimista, muito pelo contrário. Se nos munimos dessa
convicção, tudo o mais se torna possível, agradável, prazeroso e até as maiores
tormentas acabam se tornando amenas. Estarmos conscientes de que vamos morrer –
e de que isso pode acontecer a qualquer momento –, nos investe de um senso de
leveza e de responsabilidade que não podemos ter de outra maneira.
Nos
acreditarmos eternos, imortais, pode até aliviar algumas tensões, mas nos
mantém numa ilusão pueril e podemos ser colhidos sem nenhum preparo e, pior,
deixando um rastro de assuntos pendentes e coisas mal resolvidas, que podem
complicar a vida dos que ficam. É óbvio que nunca resolveremos todas as coisas,
pois estamos sempre envoltos em novos começos, novos projetos, novas buscas e
haveremos de ser colhidos em meio a algum plantio, mas, devemos ter a
responsabilidade de conduzir as coisas de forma a deixarmos nosso entorno o
mais organizado possível.
Porém,
precisamos ter o cuidado de não cair no extremo oposto: em vez de relapsos,
neuróticos pelo controle. Sabemos que os cavalos se conduzem melhor quando
deixamos as rédeas soltas, mas, firmes em nossas mãos, puxando-as sempre que o
trote começa a ficar ameaçador. É preciso controlar, organizar, planejar,
limpar, abrir mão do excesso e, ao mesmo tempo, ter a sabedoria de deixar a
vida fluir, acontecer.
Tenho
uma amiga muito querida, a Daíze. Ela é do tipo de pessoa que sempre resolve
todas as coisas, encaminha todas as pendências, apazigua os conflitos, tem
sempre o conselho adequado para as mais diversas situações. Olhando para ela, a
sensação que se tem é de estar diante de uma solucionadora, alguém que tem tudo
absolutamente sob controle. Se algo não está bem, se alguma relação está
conflituosa, se se tem alguma dúvida, se se precisa de um conselho, as pessoas
que compõem o universo do qual ela faz parte não hesitam: vão falar com a
Daíze.
Nós
temos muito pouca diferença de idade, mas, eu já aprendi muito com ela, já tivemos
inclusive alguns embates, divergência de opinião, mas, o respeito com que ela
sabe lidar com isso, com as opiniões diferentes, a maneira como ela sabe falar,
como sabe calar e como sabe ouvir, provavelmente é o que eu mais admiro nela.
Uma pessoa que sabe se colocar, que sabe ser útil, mas sabe também reconhecer
limites, até mesmo da necessidade de sua ajuda. Uma mulher que, como dizia a
minha mãe em sua sabedoria, sabe entrar e sabe sair.
Daíze
foi passar o carnaval com a família em sua casa de campo, numa simpática
cidadezinha chamada Bom Jesus dos Perdões. Sentiu-se mal, foi ao pronto
socorro, não melhorou. Retornou a São Paulo e foi para uma consulta num
hospital, onde ficou. Em uma semana passou por quatro procedimentos cirúrgicos,
retirou pedrinhas, retirou a vesícula, mas, não melhorou, o problema era um
pouco mais sério. Na última sexta-feira passou oito horas num centro cirúrgico,
tendo o seu pâncreas esquadrinhado e um pouco diminuído. Desde então ela dorme.
Está na UTI, mantida num coma induzido, ainda sem previsão de despertar. Dorme,
apenas dorme.
É
difícil para mim e para qualquer das pessoas que a conhecem imaginá-la dormindo
por tanto tempo, suspensa, ausente do palco, fora do comando das tantas
situações que ela dominava, sem a simpática varinha de condão com a qual dava
encanto e soluções inusitadas às mais diversas situações. Uma multidão de
pessoas se reuniu em torno de seu sono, velando por ele, zelando por sua paz,
por seu repouso, respeitando o seu silêncio. Todas as noites, cada um em seu
espaço, nos unimos numa corrente de orações e vibrações por ela. Formamos um
grupo no Waths App para nos inteirarmos dos pequenos progressos: a febre que
cedeu, a pressão arterial que se normalizou, os órgãos que vão reassumindo suas
atividades.
Eu
não conheço os meandros da vida particular dessa grande e delicada mulher, não
sei como estão os seus assuntos pessoais, apenas sei que, num cenário onde ela
figurava com soberania absoluta, agora brilham outras estrelas: o marido,
sempre calmo e tranquilo, porque ela estava no controle de todos os detalhes; a
filha, delicada e sensível, agora demonstrando uma força e uma maturidade
inimaginadas; o filhão de dois metros de altura deixando vir à tona toda a sua
fragilidade... E todos esperamos pelo seu despertar, quais espectadores
respeitosos diante do jardim onde repousava a Bela Adormecida.
A
vida não será mais a mesma depois desse longo sono, dessa longa pausa. Nem a
dela e nem a nossa. E, para mim em particular, a lição que fica é a de que
preciso cuidar urgentemente de meus assuntos pendentes, me livrar do lastro, me
desfazer dos excessos, me preparar para um sono inesperado, seja um sono
artificial, como o que experimenta hoje minha admirada amiga, ou o sono último,
que me levará a transpor os portais de um mundo desconhecido e certo, o
inevitável destino de cada um de nós.