sexta-feira, 29 de maio de 2015

Às mestras, com carinho



   Todas as pessoas guardam a lembrança marcante de uma professora que fez diferença em sua vida. Nós, de meia idade, somos do tempo em que professoras eram “senhora” “dona” e não tia, prof, pro. Eram profissionais que mereciam – e recebiam – nosso respeito e deferência, e nos retribuíam com sua dedicação e carinho. Claro, exceções sempre havia, como hoje há. Há professores que marcam pelo negativo, pelo amedrontar, mais que pelo educar. Na minha época de Jeremias, por exemplo, havia uma professora que jogava o apagador nos alunos que conversavam, outras colocavam alunos de castigo, atrás da porta, virados para a parede, mas, essas, eram as exceções.

   Eu não tive uma professora marcante, mas, quatro. Dando alguns pontos no bordado de minha vida, com as linhas da maturidade, me dei conta de uma grande injustiça que cometi ao longo dos anos, pois, dessas quatro, eu mencionei apenas uma. Já falei sobre ela em entrevistas, em palestras e na terapia, pois ela deixou em mim uma marca muito forte. No entanto, nunca mencionei o seu nome, pois a ferida que ela provocou ao me desanimar dos meus sonhos, sangrou por muitos anos. Ao me dizer, já às vésperas da minha formatura no Segundo Grau, que eu sonhava alto demais, que, para ser escritora, precisava nascer em uma família de escritores, de intelectuais, ter uma tradição, fazer parte do meio, querendo dizer que isso não era para o bico de uma reles empregadinha doméstica, ela me decepou. Com essas palavras de gelo, ela destruiu o que de mais belo e intenso havia dentro de mim. E o meu desejo de estudar numa faculdade pública ela reputou impossível, dizendo que nem seus filhos, que estudavam no Colégio São Luis, o melhor colégio da região na época, tinham essa pretensão de entrar numa faculdade pública sem um bom preparo, sem fazer cursinho.

   Talvez ela nem se lembre disso, provavelmente nem tenha se dado conta da proporção da crueldade das suas palavras e nem tenha percebido que, naquela noite, com seu porte elegante, muito perfumada, enquanto conversava com alguns alunos, após uma prova, ela podou uma flor, despetalando-a antes de jogá-la ao chão e pisá-la com seus elegantes sapatos de salto alto. Eu saí do Zacharias naquela noite para não voltar nunca mais. Ninguém entendeu, pois eu sempre fui uma aluna inteligente e aplicada, conhecida no Ginásio por minhas excelentes notas nas redações. Muitas oportunidades perdi, pela falta do diploma, só o obtive aos trinta e poucos anos, num curso supletivo, por incentivo do meu filho. Felizmente, consegui dar a volta por cima, deixar a via dolorosa para trilhar a via gloriosa, entrando na USP aos 40 anos, mesmo só tendo estudado em escola pública e estando há mais de vinte anos fora dela.
   É, certamente ela não se lembra. É provável que ela nem tenha percebido, porque, quem atira pedras, geralmente, nem se dá conta disso. Como pude entender alguns anos depois, ela era uma pessoa muito infeliz. No entanto, mesmo sem mencionar o seu nome, o fato de citá-la repetidas vezes, configura uma injustiça, injustiça para com as outras três, que merecem os meus agradecimentos públicos, e as quais eu nunca mencionei. Mas, vou reparar isso agora, estendendo para elas o delicado tapete da minha eterna gratidão. A outra, eu já perdoei.
   A primeira delas é a Dona Gracinda Barroso, a minha primeira professorinha, linda, com seus cabelos da cor dos trigais. Foi ela que me ensinou as primeiras letras, sílabas e palavras, junto com Fábio e Didi, que tomavam xarope e levavam o xale pra vovó, num Caminho Suave. Dona Gracinda me deu o meu bem mais precioso: em 1972, ensinou-me a escrever. Muito obrigada, querida, por ter me dado a ferramenta para o desempenho do dom com que Deus bondosamente me agraciou.
   A segunda querida professora que merece o meu carinho, gratidão e afeto é a Dona Zélia Porto, que, em 1974, quando eu cursava o terceiro ano primário, pendurava gravuras na lousa e nos ensinava a fazer composição, ou seja, a criar histórias, o que nunca mais parei de fazer até hoje e espero não parar enquanto vida tiver. Desse seu empenho em nos ensinar a arte da escrita, nasceu o meu conto “O chapéu de Alberto”, que dá título ao meu segundo livro.
   A terceira dessas fadas madrinhas é a Dona Carmem Perez Nunes, minha professora de Português e Francês, de cuja letra, porte e voz eu me lembro em minúcias até hoje, incluindo as covinhas que se desenhavam em seu rosto quando sorria. Dona Carmem foi a primeira pessoa que percebeu que eu era uma escritora e me revelou isso, na 5ª série do Ginásio, em 1976, quando eu tinha apenas 11 anos. Ao notar o meu gosto pela leitura – mais que gosto, paixão absoluta, que a pobreza da minha família não comportava – começou a me emprestar livros e mais livros. Às vezes me emprestava livros que ainda nem tinha lido e pedia a minha opinião.
   Lembro que ela ia a pé de sua casa até o Zacharias, carregando uma sacola cheia de livros para nos emprestar. Podíamos ficar um mês com eles. Eu lia um por semana. Só não lia mais porque estudava à tarde e trabalhava como babá das crianças da Dona Zaruhi no período da manhã. Para a leitura, só me sobrava a noite, que eu prolongava ao máximo, às vezes lendo na mesa da cozinha, com a luz de uma lamparina, para não atrapalhar o sono da minha mãe, que levantava de madrugada para ir trabalhar na roça. Coitadinha, ela se preocupava, tinha medo que eu ficasse “fraca das ideias” com tanta leitura. Talvez tivesse razão. Fiquei fraca para as ideias, cedo a elas, me amoldo a elas, pertenço a elas, sou cidadã do reino das ideias, onde me introduziu Dona Gracinda, me amadureceu Dona Zélia e me lapidou Dona Carmem, me fazendo ser o que hoje sou, uma mulher de palavras.
   Obrigada, queridas mestras, muito obrigada! Perdoem-me por ter demorado tanto tempo para lhes entregar, enfeitada com fitinhas de cetim e florzinhas de laranjeira, a minha infinita gratidão

Sua casa, minha vida




“Um sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas um sonho que se sonha junto é realidade”(Raul Seixas – Prelúdio)

   O nome dela era Dona Tereza. Já se passaram quinze anos, mas ainda me lembro perfeitamente do seu rosto, dos seus olhos azuis, da cor dos seus cabelos e até da roupa que ela estava usando naquele dia. Essa lembrança não se deve a nenhum privilégio de memória, é que ela foi a primeira pessoa adulta que vi chorando de felicidade e isso é uma coisa que a gente nunca mais esquece.

   Eu tinha acabado de entrar na Caixa e me causou admiração o entusiasmo dela quando fiz a simulação para o financiamento do seu imóvel: uma quitinete no centro de São Paulo, mais precisamente, na Rua Tabatinguera, bem perto da Praça da Sé. Ela custava a acreditar que poderia fazer o financiamento, pois tinha 61 anos e já era aposentada, com uma renda pequena. Cada vez que ia à agência, ela trazia uma novidade: a excelente localização, a simpatia do porteiro, a divisão da kit, que tinha a cozinha e a área de serviço separadas e um ótimo banheiro. Talvez nem precisasse trocar o piso, antigo, mas em excelente estado.


   No dia da assinatura do contrato, ela chegou cedo, antes da agência abrir. Encontrei-a na porta quando cheguei. Era uma senhora muito simples, mas, estava elegante, com um conjunto marrom, provavelmente sua melhor roupa. Quando a agência abriu, ela ficou na minha mesa até a chegada dos vendedores e do corretor. Seu nervosismo era indisfarçável e posso apostar que suava frio. Quando todos chegaram, eu e a gerente os acompanhamos ao andar superior. Os contratos eram lidos e assinados numa mesa redonda com um bonito vaso no centro. Era algo solene que a gerência fazia questão de manter.


   Quando ela recebeu as chaves das mãos do funcionário da imobiliária que intermediara a venda, não resistiu mais. Levantou-se, abraçou-me e chorou copiosamente, molhando minha blusa. Foi naquele momento que eu compreendi porque deixara meu emprego anterior, também numa estatal, para ir trabalhar na Caixa ganhando 40% menos. Ficou claro para mim que, mais que bancária/economiária, eu tinha encontrado a minha missão: ajudar a realizar sonhos.Depois da Dona Tereza, muitos nomes, muitos rostos, muitos financiamentos, muitas emoções, mas nenhuma marcou tanto quanto a dela. Mudei de agência um ano depois e nunca mais a vi, nunca mais soube dela, mas, ainda hoje, seu sorriso e suas lágrimas sobrevivem dentro de mim. Minha carreira teve altos e baixos, alguns percalços, longo afastamento para tratar de um problema de saúde, mas, há seis anos, realizei o meu grande sonho de trabalhar exclusivamente com habitação.Hoje já não tenho contato direto com os clientes, apenas com as imagens digitais de seus documentos, mas, continuo sendo um agente da realização de muitos sonhos semeados Brasil afora. E, agora, numa quantidade exponencial, pois o que há quinze anos demorava três meses para ser feito, hoje fazemos em dois dias. A pessoa entrega seus documentos lá em Ananindeua, no Pará e, dois dias depois, um simples clique meu ou de um dos meus quase 300 colegas de trabalho torna o seu sonho real. Não vejo seus sorrisos e suas lágrimas, não partilho da emoção da assinatura do contrato e do recebimento das chaves, já não sento com eles em uma elegante mesa redonda com um vaso de flores no centro e sim numa estreita baia de uma linha de produção informatizada, porém, tento imaginar a emoção e a alegria vividas por uma infinidade de famílias do Oiapoque ao Chuí.


   Às vezes a qualidade das imagens não é boa o suficiente para que se possam visualizar os rostos das fotos dos documentos, mas é sempre possível adivinhar os semblantes de suas almas. Isso pode parecer um exagero, uma simples figura de retórica, mas, não é. Sou uma mulher de meia idade romântica, irremediavelmente romântica, sei disso, assim como sei que muitos de meus colegas acham nosso trabalho maçante, tedioso e repetitivo e, depois de algum tempo, vários deles até pedem transferência para outros setores da Caixa, normalmente alegando a busca de novos desafios. Para mim, no entanto, não há desafio maior do que este e pretendo me aposentar fazendo o que faço. Também poderia me entediar se apenas analisasse documentos e conformidade operacional, mas, a matéria-prima do meu trabalho é outra, eu lido com sonhos e esperanças, eu ajudo a fomentar a realização deles.Passam pelas minhas mãos desde financiamentos de casinhas muito simples, em conjuntos habitacionais do Programa “Minha Casa, Minha Vida”, que às vezes custam menos de 50 mil reais, até imóveis de mais de um milhão. Não importa o preço da casa ou do apartamento, nada pode superar o valor de um lar. Por isso vale a pena acordar todos os dias às cinco da manhã, deixar o meu próprio sonhado lar, percorrer cerca de cem quilômetros até São Paulo, usando três diferentes conduções, para trabalhar, quando seria bem mais simples e prático tentar uma transferência para Atibaia. Faço isso – e continuarei fazendo – porque a cada financiamento que aprovo, revejo o sorriso, as lágrimas e o tremor das mãos da Dona Tereza, e posso dizer, no silêncio do meu ingênuo coração: “Sua casa, minha vida!”.

domingo, 24 de maio de 2015

Depois da Curva da Estrada






“Há um cachorro que se chama Rex. Ele mora um pouco acima da minha casa, perto de uma curva. Nós partilhamos um segredo. Todas as noites ele me espera, mesmo quando está chovendo. Mal meu carro aponta na estradinha, ele vem correndo em minha direção. Procuro sempre trazer-lhe alguma coisa, normalmente pão, mas, mesmo quando não trago nada, paro o carro, ele se aproxima e eu afago a sua cabeça demoradamente; ele chacoalha o rabo e depois corre saltitante de volta à sua casa.

Ele não é meu cão e eu não sou a sua dona, mas, isso não importa. Partilhamos um segredo. Ele sabe que todas as noites virá alguém para dar-lhe um mimo ou apenas um carinho, coisa que talvez o seu dono já nem faça, pois o passar do tempo e as dificuldades da vida acabam fazendo com que até o cachorro amigo se torne apenas parte da paisagem. E meu coração sabe que sempre haverá um cãozinho receptivo ao meu carinho perto da última curva da estrada.

Não, ele não é meu cão e eu não sou a sua dona, mas temos um acordo tácito de pertencimento. Partilhamos um segredo. É assim que o amor verdadeiro se faz, no silêncio da certeza da presença da pessoa amada. Um acaricia, o outro chacoalha o rabo e duas sedes são saciadas. O dono dele não sabe, os meus cães nem desconfiam, nem por isso se torna menor a nossa fidelidade a quem a devemos, porque a partilha do amor não o esgota, o renova. Não amamos menos por amar mais. O amor se multiplica, nunca se divide. Amplia-se, jamais se diminui.

Não, ele não é meu cão e eu não sou a sua dona, porque nada nem ninguém é de ninguém nesta vida, os seres simplesmente se encontram e se tocam. Ou não. Apenas partilhamos um segredo de pertencimento e assim, aos pedacinhos, no silêncio da nossa breve entrega, vamos ensaiando formas simples de aprender a ser feliz num mundo tão carregado de infelicidades.”

Publiquei o texto acima, há alguns meses, numa de minhas raras incursões ao Facebook, para registrar o carinho e a cumplicidade existente entre mim e o cachorrinho que morava perto da última curva da estrada que conduz ao meu lar. O texto foi muito curtido e comentado, certamente porque o tema “cachorros” toca muitas pessoas, já que, há alguns milênios, esse pequeno animal foi domesticado e segue o homem em sua jornada, como caçador, cão de guarda, cuidador das crianças, cão guia ou apenas um amigo fiel, um companheiro. Nos últimos tempos, tem havido um crescente exagero, tratando-se os cães e outros animais domésticos como seres humanos, ou mais até que isso, dedicando-lhes cuidados desnecessários e extremamente caros, em detrimento da relação com outras pessoas. Parece haver uma quantidade cada vez maior de pessoas que gostam mais de bichos do que de gente, e que se dedicam a eles de uma maneira quase doentia e idolátrica. Tanto é que o mercado pet é um dos que mais cresceram nos últimos anos, um dos únicos mercados praticamente imune às crises.

Na semana passada, vi o Rex pela última vez no domingo, ao voltar da missa, quando lhe dei um pãozinho e o costumeiro carinho. Não o vi na segunda. No feriado da terça, não saí de casa. Na quarta trouxe pão, mas, ele não veio ao meu encontro, o que estranhei. Na quinta, novamente o meu amiguinho não correu na minha direção quando meu carro despontou na curva. Na sexta, idem. Como algumas vezes o dono o coloca na corrente, ao chegar e não vê-lo pelo terceiro dia consecutivo, apesar de já ser mais de dez da noite, parei o carro e fui até a casa a fim de vê-lo, caso estivesse preso. Da rua, chamei pelo seu dono. Ninguém na casa atendeu, mas, outro vizinho que retornava de um dedo de prosa na chácara do outro lado da curva e que eu mal reconheci no escuro, pois havia cerca de três anos que ele retornara para São Paulo, veio falar comigo e disse que talvez o Juliano já estivesse dormindo. Eu sorri e expliquei que, na verdade, não queria ver o Juliano, mas sim o Rex, e ele me perguntou: “Você não sabe o que aconteceu com o Rex?” Minhas pernas bambearam...

Infelizmente, essa história não tem um final feliz. Assim como o Rex e outros cachorros são criados soltos, em casas sem muros e sem portão, há por aqui também pessoas que criam vacas, cavalos e galinhas soltos pelas ruas. Para os cavalos e as vacas, os cachorros apenas latem, mas, as galinhas costumam aguçar o instinto de caçador de nossos lobinhos domesticados e alguns as matam e até arrastam para os seus quintais para mostrar sua habilidade aos donos. Lugar de costumes estranhos para o avançado e informatizado terceiro milênio, além de vacas, cavalos, galinhas e cachorros perambulando pelas ruas, a venda de chumbinho ainda é livre por aqui... Infelizmente, o lindo cachorro preto e amarelo, mestiço de pastor alemão e vira-latas, que todas as noites lambia a minha mão e me ajudava a curar as feridas do coração, foi envenenado e morreu no feriado de 21 de abril.

Chorei por esse cachorro como se perdera um parente, ao ponto de amanhecer no dia seguinte com os olhos inchados. Eu amo cachorros, tanto que tenho nove em minha casa, mas, não os trato como gente e sim como cachorros. Como o Rex, embora não fiquem soltos pelas ruas, meus cães não têm pedigree, não frequentam pet shop, tomam banho de mangueira, jamais usam aquelas humilhantes roupinhas e nem comem comida de latinha, biscoitos em forma de ossinhos e outras futilidades. Sou consciente de que eles vivem menos que nós e procuro estar preparada para a sua partida, porém, o que mais me doeu, além do vazio de saber que nunca mais o Rex correrá na direção do meu carro quando eu fizer a curva, foi a vergonha que me deu de pertencer à espécie mais feroz e destruidora deste planeta. Pessoas que em vez de gastar com uma tela para cercar as suas galinhas, preferem gastar com veneno matando os cães que as incomodam. Há algumas que abatem também as pessoas que as incomodam...

Antes de morrer, há mais de vinte anos, minha mãe me disse, no hospital, que não tinha medo da morte, mas que a sua maior preocupação era não poder mais cuidar de mim. Estranhei isso, pois já tinha quase 30 anos, morava longe dela, era mãe, tinha minha carreira, minha independência, mas, ela explicou-me que, de todos os seus filhos, eu era a única que lhe preocupava porque era muito ingênua e tinha um coração sensível demais. Ela costumava usar a expressão “com casca e tudo” para se referir às pessoas mais rudes e o que a fazia sofrer era que o meu coração não criara casca e ela ainda me disse: “Além de não ter casca, minha filha, o seu coração fica do lado de fora do peito e só eu sei o quanto isso pode te fazer sofrer.”.

Minha mãe tinha razão. Hoje tenho mais cabelos brancos do que ela tinha quando morreu, mas meu coração ainda não criou casca e temo que nem criará, por isso eu jamais conseguirei entender essa diferença entre as pessoas; eu jamais conseguirei entender e tampouco aceitar a crueldade de alguém capaz de envenenar um cão, sobretudo um cão tão lindo, dócil e inofensivo quanto o Rex, que nunca mais poderá esperar a sua tola amiga de coração sem casca na última curva da estrada. Que bicho é esse, meu Deus, que se intitula homem e possui um potencial tão destruidor? Fortalece o meu coração, Senhor, para que eu também não acabe passando para o número daqueles que gostam mais de cachorros que de gente porque a cada dia tenho descoberto neles qualidades e um tipo de afeto cada vez mais raro entre os meus irmãos...



Procura-se um grande amor


     Procura-se um amor que busque repouso e traga aconchego. Que tenha braços fortes para sustentar uma mulher forte, mas que tenha mãos delicadas para acariciar uma mulher suave. Que traga nas faces sulcos feitos pelo tempo e que tenha a gentileza de tirar para dançar uma sorridente menina vestida com a roupagem de uma mulher de meia idade.
     Procura-se um amor que, ainda que não faça tudo o que ame, ame tudo o que faz e seja satisfeito consigo mesmo, com sua profissão, seus afazeres, sua vida e, em não estando satisfeito, que esteja verdadeiramente disposto a mudar e aventurar-se num novo recomeço.
     Procura-se um amor que tenha disponibilidade para estar presente nos momentos importantes, que tenha o desejo sincero de compartilhar, mas que preze a sua individualidade e respeite a minha; que saiba caminhar junto, mas com espaços entre os dois, a fim de não sufocarmo-nos.
     É imprescindível que acredite em Deus acima de qualquer outra coisa. Que não tenha uma fé vaga e utópica, uma religiosidade de conveniência e nem o farisaísmo e a arrogância doutrinária. É bastante adequado que partilhe a mesma crença que eu, pois, conquanto respeite a diversidade religiosa, já vivi o bastante para compreender que uniões em jugo desigual são muito desgastantes, portanto, que seja católico, e católico praticante, não apenas de fachada. Se for membro ou simpatizante da Renovação Carismática, ainda melhor, pois assim falaremos as mesmas línguas: a dos homens e a dos anjos.
     É fundamental que seja livre, emocionalmente disponível e aberto para viver um grande amor; que não viva à busca de aventuras fugazes, mas que tenha maturidade para aventurar-se nos intrigantes caminhos de um amor maduro, pautado na lealdade e na fidelidade. E, quando digo livre, é bom falar com toda a clareza: que não seja casado, namorado, amante, enrolado em qualquer tipo de relacionamento mal resolvido. E que queira e possa casar-se na Igreja. Que tenha equilíbrio para viver um namoro casto que pode não passar de namoro, mas que se disponha a ser bem mais que isso.
     Que tenha bons amigos, abertos a aceitarem a minha companhia, e um coração com espaço bastante para acolher os meus amigos. Que seja disposto à soma, à multiplicação, à ampliação e não à divisão, a diminuição, à redução, ao apequenamento.
     Pode ter um pouquinho de ciúmes, mas, só um pouquinho, para temperar a confiança mútua. Que traga feridas, mas já cicatrizadas ou em processo efetivo de cura, e que saiba respeitar as marcas que em mim foram deixadas pela vida, sem querer mudá-las.
     Ah, é fundamental que seja alegre, bem humorado, que ame a vida e veja uma imensidão de possibilidades em cada amanhecer. Que tenha o dom de me fazer rir e que se divirta com as minhas piadas. Pode até roncar um pouquinho, mas que sempre tenha nos lábios um “Bom dia, querida!” e que jamais adormeça de cara feia, sem um “Boa noite, princesa!”. Que traga encanto, aconchego e carinho às minhas noites, que as prolongue até as madrugadas, e que se disponha a deixar-se ser completamente amado e saciado por minhas carícias. Que adormeça sereno, me aquecendo com o calor do seu corpo e que não ria por eu sempre dormir de meias. É, pode roncar um pouquinho.
     Não precisa ser um padrão de beleza, mas que não seja desleixado, que se aprecie, que valorize seus pontos fortes e conviva bem com os pontos fracos; que se saiba único, que cuide de sua saúde, use perfumes gostosos, tenha sempre o desejo de estar bonito para deleitar meus olhos. Que não espere de mim esplendores de fruta verde, mas que se disponha a degustar com calma o meu sabor de fruta madura. E que jamais insinue que silicone cairia bem em alguma parte do meu corpo, sou absolutamente natural e em paz com o vigor de meus 50 anos. E que seja alto, pois tenho 1,75m e gosto de usar salto!
     Que seja presente, pois já reencontrei amores de outrora e, conquanto isso seja encantador e nostálgico, ainda que minha alma deseje, meus pés não podem percorrer o terreno do passado; apenas a estrada do hoje me pertence e me conduz aos encantos de um futuro sonhado. Que se dê no tempo do hoje o nosso encontro – e que seja breve.
     Ah, nem preciso falar que é condição “sine qua non” que goste de ler (rs), ainda que não escreva. Que aprenda a viajar nos meus textos, que me incentive nos meus voos literários e tenha sabedoria para respeitar a minha necessidade de solidão quando estou compondo.
     Também não espero que seja rico, mas que tenha uma economia equilibrada. Que não seja sovina e nem perdulário. Que não dê ao dinheiro nem mais e nem mesmo importância do que ele deve ter para uma vida sem desnecessários percalços. Que saiba, com muita clareza, dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
     Se tal encantador amante morasse em minha cidade, seria algo como tirar a sorte grande, comprar o bilhete premiado, mas, não importa de onde seja, é importante que se disponha a mudar-se para as montanhas de minha Atibaia, pois não tenho planos de deixar meu recanto, que venho construindo há anos para recebê-lo e abrigá-lo, um lugar de sonhos.
    Ah, seria interessante que tivesse um carro com tração nas quatro rodas, porque chegar aqui é algo meio próximo do rali Paris/Dakar. É para pessoas que valorizam mais o caminho do que o meio de transporte. É tipo assim Fusca, Jipe, Rural... Mas, isso é só um detalhe, eu tenho um excelente mecânico e já sou praticamente cliente vip da oficina de alinhamento, balanceamento, troca de suspensão e amortecedores! Portanto, aqueles moços simpáticos que têm verdadeiros casos de amor com seus carros luxuosos, infelizmente terão de ser descartados...
     Que tenha cultura e conhecimentos diversificados, porém, mais que isso, que possua sabedoria. Que conheça uma porção de coisas e goste de conversar sobre elas, que goste de ensinar o que sabe e aprender coisas novas. Que não seja do tipo arrogante, que preze muito ter razão em tudo; que, assim como eu, conquanto um pouquinho teimosa de vez em quando, já tenha aprendido a escolher ser feliz em vez de ter sempre razão. Que não seja excessivamente problemático, mas, que tenha suficientes imperfeições para não ser um chato! 
     Precisa ser apaixonado por cachorros, pois vivo cercada deles e ainda me relaciono com alguns dispersos pela vizinhança. Que não ria de mim por eu não saber andar de bicicleta, mas, que esteja disposto a ensinar-me. Que nunca diga que eu dirijo mal, mesmo quando eu dirigir mal (não existe coisa mais irritante que homem que critica uma mulher ao volante!).
     Adianto que cozinho bem, que tenho uma relação meio alquímica com o ato de cozinhar, mas apreciaria imensamente que meu futuro amor também o fizesse, que cozinhasse para mim, que cozinhássemos juntos, que nos auxiliássemos nessa arte e, sobre aquela parte de lavar a louça... bem, é claro que um homem especial como esse que caminha ao meu encontro amará lavar, secar e guardar a louça e, claro, limpar o fogão de vez em quando!
     O que mais posso esperar desse amor sonhado? Que seja carinhoso, que goste muito de beijar na boca, fazer coisas bobas como andar na chuva, namorar na varanda em noites de lua cheia, ficar de bobeira na rede, jogando conversa fora, andar abraçado ou de mãos dadas, abrir a porta do carro, carregar as compras. Que tenha disponibilidade para cuidar e abertura para ser cuidado.
     Que goste de levantar cedo e que se deleite com o pôr-do-sol, do tipo que para o carro na estrada para apreciar esse momento mágico. Que se extasie com o arco-íris. Que ria muito e me faça rir muito, e nunca me peça para não chorar e muito menos que não tenha coragem de chorar.
     Que não seja muito dado à bebida, apenas um vinho de vez em quando, eventualmente uma cervejinha ou o trago de uma boa pinguinha de alambique. Que tenha aversão ao cigarro e, preferivelmente, não seja fanático por futebol, do tipo que assiste 47 reprises do mesmo jogo num único domingo... Que goste muito de música de um modo geral, mas deteste pagode e curta moda de viola.
     Que jamais grite comigo e nunca admita que eu grite consigo; que converse sempre olhando nos olhos. Que me permita descalçar-lhe os sapatos e massagear seus pés e que também se disponha a fazer isso com os meus. Que não se sinta ameaçado com a minha independência e nem me fira com a sua. Que tenha a força de admitir-se fraco e a coragem de se reconhecer aprendiz. Que ame a viagem mais do que o destino e o repouso mais do que a agitação inútil. Que seja romântico, mas sem ser pegajoso. Que opte pelo silêncio em vez dos lugares comuns e frases feitas, como dizer a uma pessoa deprimida para ter força de vontade.
     Que tenha noção de suas imperfeições e defeitos, mas que tenha a ousadia de superar-se. Que tenha amor à disciplina, que seja caridoso e tenha interesse real pelas pessoas. Seria bom que tivesse filhos, pois é sublime ser agraciado com essa bênção, mas, que, tendo-os ou não, ainda considere a possibilidade de tê-los, pelas vias naturais, contando com os avanços da medicina, ou pelas vias da misericórdia, diante de tantas crianças sem lar e abandonadas. Que queira de fato construir uma família.
     Que queira envelhecer junto e voltar a ser criança de mãos dadas. Que aprecie o avanço tecnológico, mas não se escravize a isso e ainda se disponha a escrever, a mão, longas cartas de amor, ridículas e açucaradas, e que sempre me dê flores, ainda que roubadas e não se surpreenda com o fato de eu não comer chocolate.
     Enfim, que tenha amor bastante para preencher-me, mas que também tenha suficiente espaço vazio para receber a dádiva do amor que me vai na alma e que está para ele reservado, maturando-se e adquirindo novos sabores a cada dia, como vinho antigo. Não importa que tenha pés cansados, desde que tenha suficiente fé para acreditar que encontrará em mim o conforto de um sapato laceado, o número exato para pés machucados.
     Bem, se você for este homem que procuro e que espero também esteja à minha procura, não perca mais tempo, caminhe rumo à construção da nossa felicidade. Se você não for este homem, mas conhecer um que se pareça com ele, dê-lhe meu endereço, conte-lhe que estou à sua espera, sem desespero, sem angústia, com calma e serenidade, mas, que já não tenho 18 anos e o tempo não deixará de caminhar apenas para retardar nosso encontro.
     O tempo é agora. Venha! Estarei tomando um chá de erva-doce com pétalas de rosa, sentada na cadeira de balanço da varanda, enquanto você caminha na minha direção. Mas, não se demore por demais, não pretendo perder o viço do que resta da juventude com a qual desejo presenteá-lo. Vem!
izilda.oliveira@usp.br
x

segunda-feira, 9 de março de 2015

Assuntos Pendentes







           É comum caminharmos pela vida cheios de certezas a respeito dos mais variados assuntos, mas, concretamente, só temos uma certeza, absoluta, inquestionável, imutável e inegociável: vamos morrer. Tudo o mais são suposições, hipóteses, efêmeras possibilidades. Cultivar essa certeza única não significa assumir uma postura mórbida, negativa, pessimista, muito pelo contrário. Se nos munimos dessa convicção, tudo o mais se torna possível, agradável, prazeroso e até as maiores tormentas acabam se tornando amenas. Estarmos conscientes de que vamos morrer – e de que isso pode acontecer a qualquer momento –, nos investe de um senso de leveza e de responsabilidade que não podemos ter de outra maneira.

Nos acreditarmos eternos, imortais, pode até aliviar algumas tensões, mas nos mantém numa ilusão pueril e podemos ser colhidos sem nenhum preparo e, pior, deixando um rastro de assuntos pendentes e coisas mal resolvidas, que podem complicar a vida dos que ficam. É óbvio que nunca resolveremos todas as coisas, pois estamos sempre envoltos em novos começos, novos projetos, novas buscas e haveremos de ser colhidos em meio a algum plantio, mas, devemos ter a responsabilidade de conduzir as coisas de forma a deixarmos nosso entorno o mais organizado possível.

Porém, precisamos ter o cuidado de não cair no extremo oposto: em vez de relapsos, neuróticos pelo controle. Sabemos que os cavalos se conduzem melhor quando deixamos as rédeas soltas, mas, firmes em nossas mãos, puxando-as sempre que o trote começa a ficar ameaçador. É preciso controlar, organizar, planejar, limpar, abrir mão do excesso e, ao mesmo tempo, ter a sabedoria de deixar a vida fluir, acontecer.

Tenho uma amiga muito querida, a Daíze. Ela é do tipo de pessoa que sempre resolve todas as coisas, encaminha todas as pendências, apazigua os conflitos, tem sempre o conselho adequado para as mais diversas situações. Olhando para ela, a sensação que se tem é de estar diante de uma solucionadora, alguém que tem tudo absolutamente sob controle. Se algo não está bem, se alguma relação está conflituosa, se se tem alguma dúvida, se se precisa de um conselho, as pessoas que compõem o universo do qual ela faz parte não hesitam: vão falar com a Daíze.

Nós temos muito pouca diferença de idade, mas, eu já aprendi muito com ela, já tivemos inclusive alguns embates, divergência de opinião, mas, o respeito com que ela sabe lidar com isso, com as opiniões diferentes, a maneira como ela sabe falar, como sabe calar e como sabe ouvir, provavelmente é o que eu mais admiro nela. Uma pessoa que sabe se colocar, que sabe ser útil, mas sabe também reconhecer limites, até mesmo da necessidade de sua ajuda. Uma mulher que, como dizia a minha mãe em sua sabedoria, sabe entrar e sabe sair.

Daíze foi passar o carnaval com a família em sua casa de campo, numa simpática cidadezinha chamada Bom Jesus dos Perdões. Sentiu-se mal, foi ao pronto socorro, não melhorou. Retornou a São Paulo e foi para uma consulta num hospital, onde ficou. Em uma semana passou por quatro procedimentos cirúrgicos, retirou pedrinhas, retirou a vesícula, mas, não melhorou, o problema era um pouco mais sério. Na última sexta-feira passou oito horas num centro cirúrgico, tendo o seu pâncreas esquadrinhado e um pouco diminuído. Desde então ela dorme. Está na UTI, mantida num coma induzido, ainda sem previsão de despertar. Dorme, apenas dorme.

É difícil para mim e para qualquer das pessoas que a conhecem imaginá-la dormindo por tanto tempo, suspensa, ausente do palco, fora do comando das tantas situações que ela dominava, sem a simpática varinha de condão com a qual dava encanto e soluções inusitadas às mais diversas situações. Uma multidão de pessoas se reuniu em torno de seu sono, velando por ele, zelando por sua paz, por seu repouso, respeitando o seu silêncio. Todas as noites, cada um em seu espaço, nos unimos numa corrente de orações e vibrações por ela. Formamos um grupo no Waths App para nos inteirarmos dos pequenos progressos: a febre que cedeu, a pressão arterial que se normalizou, os órgãos que vão reassumindo suas atividades.

Eu não conheço os meandros da vida particular dessa grande e delicada mulher, não sei como estão os seus assuntos pessoais, apenas sei que, num cenário onde ela figurava com soberania absoluta, agora brilham outras estrelas: o marido, sempre calmo e tranquilo, porque ela estava no controle de todos os detalhes; a filha, delicada e sensível, agora demonstrando uma força e uma maturidade inimaginadas; o filhão de dois metros de altura deixando vir à tona toda a sua fragilidade... E todos esperamos pelo seu despertar, quais espectadores respeitosos diante do jardim onde repousava a Bela Adormecida.


A vida não será mais a mesma depois desse longo sono, dessa longa pausa. Nem a dela e nem a nossa. E, para mim em particular, a lição que fica é a de que preciso cuidar urgentemente de meus assuntos pendentes, me livrar do lastro, me desfazer dos excessos, me preparar para um sono inesperado, seja um sono artificial, como o que experimenta hoje minha admirada amiga, ou o sono último, que me levará a transpor os portais de um mundo desconhecido e certo, o inevitável destino de cada um de nós.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Onde estará o meu amor?

Onde estará o meu amor? 
Chico César/Maria Bethânia

Como esta noite findará 
E o sol então rebrilhará 
Estou pensando em você 
Onde estará o meu amor? 
Será que vela como eu? 
Será que chama como eu? 
Será que pergunta por mim? 
Onde estará o meu amor? 

Se a voz da noite responder 
Onde estou eu, onde está você 
Estamos cá dentro de nós sós 
Onde estará o meu amor? 
Se a voz da noite silenciar 
Raio de sol vai me levar 
Raio de sol vai lhe trazer 

Como esta noite findará 
E o sol então rebrilhará 
Estou pensando em você 
Será que vela como eu? 
Será que chama como eu? 
Será que pergunta por mim? 

 Se a voz da noite responder 
Onde estou eu, onde está você 
Estamos cá dentro de nós sós 
Onde estará o meu amor? 
Se a voz da noite silenciar 
Raio de sol vai me levar 
Raio de sol vai lhe trazer 

Será que pergunta por mim? 
Onde estará o meu amor?


Beleza Infinita


Há muitos anos, conheci um homem estonteantemente lindo, dessas belezas que ofuscam a vista e que eu costumo chamar de beleza ignorante. E não era apenas a sua beleza física que chamava a atenção, mas também a sua beleza interior, do tipo que poderia ser feio que pareceria lindo. Era especial e lindo. Dizem que não tem ninguém feio, mas, tem sim, tem gente muito feia e isso não é um conceito relativo, é um fato. Tem gente alta e gente baixa, gente gorda e gente magra, gente branca e gente preta, gente feia e gente bonita. Eu não eu me pergunto o porquê dessas diferenças, mas resolvi perguntar a Deus por que às vezes Ele faz umas pessoas cuja beleza excede, como Brad Pitty, Angelina Jolie e este homem. Sabem o que Ele me respondeu? "No caso dos dois primeiros, eles iam precisar dessa beleza para poder trabalhar e no caso da outra pessoa é que quando fiz a sua alma, fui fazendo com tanto carinho, tanto esmero, foi ficando tão bonita, tão bonita e eu fui me empolgando e caprichando mais, mais... Aí, quando eu vi, não cabia mais tanta beleza lá dentro e eu precisei deixar derramar um pouco pra fora!"

Não vou compartilhá-lo todo, apenas os seus olhos, que falam por si e não me deixam mentir...



sábado, 17 de janeiro de 2015

Apenas uma canção de amor, para um grande amor...



Hoje, aliás, ontem, pois já são mais de três da manhã, eu voltei de São Paulo triste. Peguei meu carro no posto onde costumo deixá-lo, na Fernão Dias e, ao pegar a estradinha de terra que me traz para a segurança do meu lar entre as montanhas, não pude evitar as lágrimas. Estava triste de uma tristeza triste. Vim chorando enquanto dirigia. Chorando e falando com Deus, pedindo a Ele que não soltasse minha mão e dizendo a Ele que precisava falar com alguém, precisava de um ombro para encostar a cabeça, braços para me abraçar. Mas, não podia ser um alguém qualquer. Precisava ser uma pessoa em quem eu de fato confiasse, alguém que me olhasse e me visse por dentro, alguém que não se importasse com minhas lágrimas, não me criticasse e nem me julgasse fraca por estar chorando. Alguém que de fato se importasse comigo.

É claro que o amor de Deus nos basta, mas, Ele sabe que muitas vezes precisamos encontrá-Lo no outro, por isso ordenou que O amássemos sobre todas as coisas, mas amássemos também ao próximo como a nós mesmos. E eu, de fato, precisava de um próximo que fosse verdadeiramente próximo, que não me questionasse, que apenas me deixasse estar, falando ou em silêncio, apenas estar inteira naquela emoção um tanto amarga, até passar.

Já era tarde e não daria pra telefonar pra ninguém, além do que, as pessoas costumam passear às sextas-feiras à noite ou apenas descansar, não queria ser um peso a ninguém. Então, logo que entrei, fui ao primeiro dos meus cachorrinhos, o Gaspar, que me fez uma série de mimos, mas, decididamente, conquanto ame imensamente os meus cãezinhos e seja muito amada por eles, era de calor humano que meu coração necessitava. Então tive a inspiração de ligar o computador. Quem compartilha meu Face sabe o quão raramente entro aqui, tanto que há mais de 130 mensagens de aniversário e eu não li nenhuma delas. Não sou muito dada ao virtual e, além do mais, não tenho uma Internet de qualidade. Mas, eu queria conversar, precisava conversar e pensei: Será que ainda existem aquelas salas de bate-papo do UOL? Coisa ultrapassada, né? Bem, eu não tenho nem Wats Ap (nem sei se é assim que se escreve)...

O desejo de ligar o micro era muito forte e eu simplesmente atendi a ele, afinal, vim falando com Deus por oito quilômetros de estradas esburacadas, costumo atender aos sinais Dele e era possível que, se eu não estivesse ficando maluca, Ele estivesse querendo me dizer algo por essa via, responder aos meus lamentos e me abençoar com a sua misericórdia.

Incrível, não era maluquice minha! Era mesmo Deus tentando me falar. Liguei o micro, abri o site do UOL, li umas vinte tragédias só na home page e vim pro Face. Tinha vinte e oito de recados na minha caixa privada, além dos cento e trinta e poucos públicos. Cliquei em um, aleatoriamente, e só havia uma palavra: "Izilda?", escrita havia onze minutos. Há anos as pessoas não me chamam de Izilda, se alguém viu meu perfil e me reconheceu assim, ou ao menos supôs me reconhecer, eu precisava saber quem era. Não identifiquei quem era pelo nome e pelo pequeno ícone da foto. Respondi: "Sim, Izilda" e cliquei no nome. Para minha surpresa, reconheci a pessoa imediatamente e era a pessoa exata com que eu poderia falar num momento de tanta sensibilidade.

Não direi aqui de quem se tratava, não o adicionei aos amigos e nem pretendo adicionar e sei que ele também não fará isso. Foi um encontro único, uma descoberta inusitada para uma conversa só, mas, uma conversa que me alimentou e me iluminou pelo ano inteiro ou talvez por alguns muitos anos futuros, e eu agradeço imensamente a Deus por esse presente magnífico, por essas horas de conversa terna e amiga.

Era uma pessoa de um muito distante passado, de algumas décadas, mas, sem sombra de dúvida, a pessoa em que mais confiei na minha vida e pude debruçar no seu ombro, ainda que virtualmente, e nem precisei falar de tristeza, porque a conversa foi tão boa e tão amena que até me esqueci da dor e da solidão que me levaram a ligar o micro. Posso dizer que esse encontro foi o presente de Deus para o meu recém comemorado aniversário de 50 anos. Um presente inesquecível e especial, que me fez voltar mais de trinta anos no tempo e me sentir novamente uma menina muito amada. E se, nesta noite de sexta-feira, voltando sozinha pra casa, me senti mergulhada no abandono, Deus, para quem o tempo é sempre o presente, me deu o especial presente de ter novamente 18 anos e reviver o maior e mais puro amor com que a vida me brindou e que, por incompreensíveis razões, eu deixei partir; mais que isso, eu mandei embora.

Este é um texto longo e duvido que muita gente, além da minha " personal consulting" Adriana Miyasato e talvez a amiga Luísa Mel tenha a curiosidade e a paciência de ler até o fim. Hoje é tudo muito rápido, textos longos não emplacam, enfadam. Também duvido que a pessoa especial que me inspirou escrevê-lo se atreva a voltar a caminhar por esta página, pois há coisas que devem ficar onde forma deixadas, mas, caso volte, que receba a minha mais sincera gratidão e que saiba que valeu a pena esperar mais de trinta anos por essa conversa na qual se falou o que precisava se falar, sem mágoas, sem ressentimentos e sem ilusões.

Deus é infinitamente misericordioso e usou o coração que me foi mais precioso nesta vida para me dizer: "Filha, você nunca está sozinha, pois o meu amor está sempre com você!" Obrigada, Senhor! E, obrigada, anjo, por ter atendido a um pedido do Pai e ter vindo me dar um pouquinho de você, sobretudo o seu perdão. Leva pra sempre o meu amor e nunca se esqueça da Zefineta B do Frei Abóbora. Nunca se esqueça de nenhum dos detalhes de tudo de lindo, puro e mágico que compartilhamos. Sempre sempre, você será para sempre! Às vezes as almas gêmeas se separam, mas, nunca deixam de ser gêmeas por isso, pois há coisas que independem do tempo e do espaço, coisas que são para sempre, que não morrem jamais. Neste momento você já deve estar dormindo, ou talvez role na cama tentando organizar as lembranças. Da minha parte, só posso retribuir ao primeiro presente que você me deu, na noite do dia em que nos conhecemos, uma música do Moacyr Franco, que já era brega naquela época, porém linda e continua sendo, magnífica e muito significativa:

"Corro tanto pra chegar,
Então eu paro sem saber
Se devo entrar.
Quando parti eu não pensei
Que um dia voltaria
E voltei...
Tudo estava bem,
Ela e eu e tudo o que sonhei.
Que louco (a) fui
Dizendo adeus e partindo
Para o mundo conquistar,
Nem eu sei pra quê.
Eu recordo seu olhar,
Tão cansado de chorar
Por quem partiu.
E num aceno derradeiro
Quando a tarde ia morrer
Eu disse adeus.
Em outro céu eu procurei
A mesma estrela que brilhou
Só para mim.
E muito longe não achei
Essa luz que guiava
O meu viver.
Querida(o) hoje volto,
Cansei de sofrer.
Perdoa se um dia
Tentei te esquecer.
Faz tanto tempo que nem sei
O que restou do que levei
No coração.
Por mil caminhos eu perdi
Orgulho, paz e percebi
Que nada sou.
O tempo passa sem cessar
E faz a vida transformar
Em tristeza em solidão.
A primavera já passou,
Outono veio me envolver
E eu sei por quê.
Querida(o) hoje volto,
Cansei de sofrer.
Perdoa se um dia
Tentei te esquecer.
Mas de repente eu vejo abrir
Uma janela e a sorrir,
Te vejo, amor.
Teu nome tento murmurar
E o pranto doce a deslizar,
Me faz calar.
Tuas mãos que eu beijei
Estão cheias de perdão
Só para mim.
Se trago dor e solidão
Em teu amor hei de encontrar
O que perdi.
Querida(o) eu volto,
Por favor esqueça
Tudo, tudo, tudo o que passou...”

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Picada de Marimbondo

Picada de marimbondo,
Como o amor que não vingou,
É ternura desprezada,
Pé de flor que não brotou.

Marimbondo, bicho estranho,
Abelha que não faz mel,
Sua picada dolorida

Fere até anjo do céu.

 Marimbondo fez morada
Na casa dos meus anseios,
Fez seu ninho nos meus sonhos,
Ferroou meu corpo inteiro.

Picada de marimbondo
Como o amor que não vingou,
É ternura desprezada,
Pé de flor que não brotou...



Hoje tomei a liberdade de iniciar esta coluna com o trecho de um poeminha singelo que achei nos meus guardados, versinhos simples que bem poderiam se transformar em moda de viola (quem sabe?), mas que, em sua simplicidade nos levam a refletir sobre alguns riscos desnecessários que corremos quando agimos sem pensar.

            Conheci uma moça muito dada às questões de proteção ambiental e respeito a todos os seres vivos. Um dia ela chegou em casa e viu o início de uma casinha de abelhas na parede da garagem. Ficou emocionada pela deferência recebida dos bichinhos que escolheram sua humilde morada para construir sua colmeia. Os dias passavam e ela mais e mais se encantava com a rapidez e eficiência com que os operosos insetos avançavam na construção.  Logo apareceu alguém que lhe aconselhou botar fogo naquilo antes que crescesse, mas, ela rebateu com seus retilíneos conceitos sobre o respeito à vida e a convivência harmônica entre todas as criaturas.

            Mais o cacho crescia, mais conselhos ouvia para que desse fim àquilo, agora já um pouco mais difícil devido ao aumento na quantidade das estranhas “abelhas”. Alguém sugeriu tocar fogo, até se ofereceu para ajudar. Outro falou em veneno e uma colega mais politicamente correta sugeriu procurar a ajuda de um apicultor para remover o cacho em segurança e transpô-lo para um lugar onde não oferecesse perigo. E, entendida na arte de criar abelhas e extrair mel, acabou logo com a ilusão da outra: não eram abelhas e sim vespas, cuja ferroada é dolorosíssima e pode ser muito nociva à saúde e oferecer até risco de morte se a pessoa atacada for alérgica. Mas, a “dona” do vespeiro (que ainda acreditava serem abelhas produtoras de mel) achou tudo aquilo um exagero.

            Certa manhã, atrasada, ao tirar o carro da garagem, fez um movimento brusco que “irritou” suas vizinhas e uma delas foi certeira em sua orelha esquerda, picando e provocando dor, inchaço e vermelhidão que demoraram dois dias para melhorar. O fato a constrangeu, como podiam tratar dessa forma a sua protetora? Bem, para encurtar a história, abelhas, vespas e marimbondos são insetos e, ainda que apresentem um modo de vida surpreendentemente organizado, não raciocinam... Quando sentiu que estava perdendo o controle da situação, com vergonha de pedir ajuda e mostrar que estivera errada, a pobre moça comprou um frasco de veneno e, sem nenhuma proteção, partiu para o ataque às ingratas vizinhas. Quem já viu o ataque de um enxame pode deduzir o desfecho, quem nunca viu, pode imaginar...

            Outra conhecida, também desajuizada, essa já na categoria das mulheres de meia, conheceu um simpático e frágil homem infeliz no casamento e que muito se admirou de que todas as mulheres do mundo não fossem tão compreensivas quanto aquela sensível, bem apanhada e solitária dama. Não demorou que passasse de ouvinte compreensiva a amiga carinhosa (vespeiros se instalam muito rapidamente). Também dessa vez, não faltou quem a aconselhasse, mas, feito a outra, não admitiu que pudesse estar equivocada em uma coisa tão óbvia, aquele gentil e mal compreendido homem não era como os outros, afinal, já era um senhor de seus mais de 60 e ela também já não era uma menina... Por que ser contra a natureza e tentar impedir que as boas e operosas abelhinhas produzissem o seu mel?

            Está certo que estranhou alguns sumiços e alguns comportamentos estranhos, talvez não se tratasse de abelhas e sim de marimbondos, com hábitos muito peculiares, como ficar sempre escondidos, construir seus ninhos nas frestas das paredes, preferir o escuro à luz do dia, não andar em bandos, mas em voos solitários, sumir inesperadamente... Ah, mas toda abelha tem seu fascínio e talvez o marimbondo fosse apenas uma abelha grande!

            Tudo evoluiu, com atenções e carinhos, torpedinhos e telefonemas até culminar no óbvio e no óbvio do óbvio: na manhã seguinte a uma inesquecível noite de amor, a dona da fresta onde se alojaram os marimbondos mandou uma emocionada e terna mensagem e recebeu de volta: “Por favor, não me escreva sem que eu o faça primeiro. Não seja imprudente. Não quero causar dor e desarmonia à minha esposa.” Bem, quem já foi picado por marimbondo pode se lembrar da dor, quem nunca foi, pode imaginá-la: é lancinante, terrível, ainda mais quando a picada é direto no coração...
            Resolvi contar essas duas historinhas para mostrar que mulheres de meia, ainda que inteligentes, espertas e bem resolvidas, às vezes são mais tontas que uma toupeira! Se abelhas começarem a fazer casinha na sua parede, acabe logo com ela. Todo apicultor sabe disso, lugar de abelha não é na porta de casa e, para leigos, abelha, vespa e marimbondo pode parecer a mesma coisa, mas, ainda que o mel seja doce, o ferrão tem o poder de ferir e até de matar. Ser cuidadoso é fundamental porque o mal, quase sempre, tem a aparência de bem e picada de marimbondo é coisa que dói demais.