sexta-feira, 29 de maio de 2015

Às mestras, com carinho



   Todas as pessoas guardam a lembrança marcante de uma professora que fez diferença em sua vida. Nós, de meia idade, somos do tempo em que professoras eram “senhora” “dona” e não tia, prof, pro. Eram profissionais que mereciam – e recebiam – nosso respeito e deferência, e nos retribuíam com sua dedicação e carinho. Claro, exceções sempre havia, como hoje há. Há professores que marcam pelo negativo, pelo amedrontar, mais que pelo educar. Na minha época de Jeremias, por exemplo, havia uma professora que jogava o apagador nos alunos que conversavam, outras colocavam alunos de castigo, atrás da porta, virados para a parede, mas, essas, eram as exceções.

   Eu não tive uma professora marcante, mas, quatro. Dando alguns pontos no bordado de minha vida, com as linhas da maturidade, me dei conta de uma grande injustiça que cometi ao longo dos anos, pois, dessas quatro, eu mencionei apenas uma. Já falei sobre ela em entrevistas, em palestras e na terapia, pois ela deixou em mim uma marca muito forte. No entanto, nunca mencionei o seu nome, pois a ferida que ela provocou ao me desanimar dos meus sonhos, sangrou por muitos anos. Ao me dizer, já às vésperas da minha formatura no Segundo Grau, que eu sonhava alto demais, que, para ser escritora, precisava nascer em uma família de escritores, de intelectuais, ter uma tradição, fazer parte do meio, querendo dizer que isso não era para o bico de uma reles empregadinha doméstica, ela me decepou. Com essas palavras de gelo, ela destruiu o que de mais belo e intenso havia dentro de mim. E o meu desejo de estudar numa faculdade pública ela reputou impossível, dizendo que nem seus filhos, que estudavam no Colégio São Luis, o melhor colégio da região na época, tinham essa pretensão de entrar numa faculdade pública sem um bom preparo, sem fazer cursinho.

   Talvez ela nem se lembre disso, provavelmente nem tenha se dado conta da proporção da crueldade das suas palavras e nem tenha percebido que, naquela noite, com seu porte elegante, muito perfumada, enquanto conversava com alguns alunos, após uma prova, ela podou uma flor, despetalando-a antes de jogá-la ao chão e pisá-la com seus elegantes sapatos de salto alto. Eu saí do Zacharias naquela noite para não voltar nunca mais. Ninguém entendeu, pois eu sempre fui uma aluna inteligente e aplicada, conhecida no Ginásio por minhas excelentes notas nas redações. Muitas oportunidades perdi, pela falta do diploma, só o obtive aos trinta e poucos anos, num curso supletivo, por incentivo do meu filho. Felizmente, consegui dar a volta por cima, deixar a via dolorosa para trilhar a via gloriosa, entrando na USP aos 40 anos, mesmo só tendo estudado em escola pública e estando há mais de vinte anos fora dela.
   É, certamente ela não se lembra. É provável que ela nem tenha percebido, porque, quem atira pedras, geralmente, nem se dá conta disso. Como pude entender alguns anos depois, ela era uma pessoa muito infeliz. No entanto, mesmo sem mencionar o seu nome, o fato de citá-la repetidas vezes, configura uma injustiça, injustiça para com as outras três, que merecem os meus agradecimentos públicos, e as quais eu nunca mencionei. Mas, vou reparar isso agora, estendendo para elas o delicado tapete da minha eterna gratidão. A outra, eu já perdoei.
   A primeira delas é a Dona Gracinda Barroso, a minha primeira professorinha, linda, com seus cabelos da cor dos trigais. Foi ela que me ensinou as primeiras letras, sílabas e palavras, junto com Fábio e Didi, que tomavam xarope e levavam o xale pra vovó, num Caminho Suave. Dona Gracinda me deu o meu bem mais precioso: em 1972, ensinou-me a escrever. Muito obrigada, querida, por ter me dado a ferramenta para o desempenho do dom com que Deus bondosamente me agraciou.
   A segunda querida professora que merece o meu carinho, gratidão e afeto é a Dona Zélia Porto, que, em 1974, quando eu cursava o terceiro ano primário, pendurava gravuras na lousa e nos ensinava a fazer composição, ou seja, a criar histórias, o que nunca mais parei de fazer até hoje e espero não parar enquanto vida tiver. Desse seu empenho em nos ensinar a arte da escrita, nasceu o meu conto “O chapéu de Alberto”, que dá título ao meu segundo livro.
   A terceira dessas fadas madrinhas é a Dona Carmem Perez Nunes, minha professora de Português e Francês, de cuja letra, porte e voz eu me lembro em minúcias até hoje, incluindo as covinhas que se desenhavam em seu rosto quando sorria. Dona Carmem foi a primeira pessoa que percebeu que eu era uma escritora e me revelou isso, na 5ª série do Ginásio, em 1976, quando eu tinha apenas 11 anos. Ao notar o meu gosto pela leitura – mais que gosto, paixão absoluta, que a pobreza da minha família não comportava – começou a me emprestar livros e mais livros. Às vezes me emprestava livros que ainda nem tinha lido e pedia a minha opinião.
   Lembro que ela ia a pé de sua casa até o Zacharias, carregando uma sacola cheia de livros para nos emprestar. Podíamos ficar um mês com eles. Eu lia um por semana. Só não lia mais porque estudava à tarde e trabalhava como babá das crianças da Dona Zaruhi no período da manhã. Para a leitura, só me sobrava a noite, que eu prolongava ao máximo, às vezes lendo na mesa da cozinha, com a luz de uma lamparina, para não atrapalhar o sono da minha mãe, que levantava de madrugada para ir trabalhar na roça. Coitadinha, ela se preocupava, tinha medo que eu ficasse “fraca das ideias” com tanta leitura. Talvez tivesse razão. Fiquei fraca para as ideias, cedo a elas, me amoldo a elas, pertenço a elas, sou cidadã do reino das ideias, onde me introduziu Dona Gracinda, me amadureceu Dona Zélia e me lapidou Dona Carmem, me fazendo ser o que hoje sou, uma mulher de palavras.
   Obrigada, queridas mestras, muito obrigada! Perdoem-me por ter demorado tanto tempo para lhes entregar, enfeitada com fitinhas de cetim e florzinhas de laranjeira, a minha infinita gratidão

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