“Há
um cachorro que se chama Rex. Ele mora um pouco acima da minha casa, perto de
uma curva. Nós partilhamos um segredo. Todas as noites ele me espera, mesmo
quando está chovendo. Mal meu carro aponta na estradinha, ele vem correndo em
minha direção. Procuro sempre trazer-lhe alguma coisa, normalmente pão, mas,
mesmo quando não trago nada, paro o carro, ele se aproxima e eu afago a sua
cabeça demoradamente; ele chacoalha o rabo e depois corre saltitante de volta à
sua casa.
Ele
não é meu cão e eu não sou a sua dona, mas, isso não importa. Partilhamos um
segredo. Ele sabe que todas as noites virá alguém para dar-lhe um mimo ou
apenas um carinho, coisa que talvez o seu dono já nem faça, pois o passar do
tempo e as dificuldades da vida acabam fazendo com que até o cachorro amigo se
torne apenas parte da paisagem. E meu coração sabe que sempre haverá um
cãozinho receptivo ao meu carinho perto da última curva da estrada.
Não,
ele não é meu cão e eu não sou a sua dona, mas temos um acordo tácito de
pertencimento. Partilhamos um segredo. É assim que o amor verdadeiro se faz, no
silêncio da certeza da presença da pessoa amada. Um acaricia, o outro chacoalha
o rabo e duas sedes são saciadas. O dono dele não sabe, os meus cães nem
desconfiam, nem por isso se torna menor a nossa fidelidade a quem a devemos,
porque a partilha do amor não o esgota, o renova. Não amamos menos por amar
mais. O amor se multiplica, nunca se divide. Amplia-se, jamais se diminui.
Não,
ele não é meu cão e eu não sou a sua dona, porque nada nem ninguém é de ninguém
nesta vida, os seres simplesmente se encontram e se tocam. Ou não. Apenas
partilhamos um segredo de pertencimento e assim, aos pedacinhos, no silêncio da
nossa breve entrega, vamos ensaiando formas simples de aprender a ser feliz num
mundo tão carregado de infelicidades.”
Publiquei o texto acima, há
alguns meses, numa de minhas raras incursões ao Facebook, para registrar o
carinho e a cumplicidade existente entre mim e o cachorrinho que morava perto
da última curva da estrada que conduz ao meu lar. O texto foi muito curtido e
comentado, certamente porque o tema “cachorros” toca muitas pessoas, já que, há
alguns milênios, esse pequeno animal foi domesticado e segue o homem em sua
jornada, como caçador, cão de guarda, cuidador das crianças, cão guia ou apenas
um amigo fiel, um companheiro. Nos últimos tempos, tem havido um crescente
exagero, tratando-se os cães e outros animais domésticos como seres humanos, ou
mais até que isso, dedicando-lhes cuidados desnecessários e extremamente caros,
em detrimento da relação com outras pessoas. Parece haver uma quantidade cada
vez maior de pessoas que gostam mais de bichos do que de gente, e que se dedicam
a eles de uma maneira quase doentia e idolátrica. Tanto é que o mercado pet é
um dos que mais cresceram nos últimos anos, um dos únicos mercados praticamente
imune às crises.
Na semana passada, vi o Rex pela
última vez no domingo, ao voltar da missa, quando lhe dei um pãozinho e o
costumeiro carinho. Não o vi na segunda. No feriado da terça, não saí de casa.
Na quarta trouxe pão, mas, ele não veio ao meu encontro, o que estranhei. Na
quinta, novamente o meu amiguinho não correu na minha direção quando meu carro
despontou na curva. Na sexta, idem. Como algumas vezes o dono o coloca na
corrente, ao chegar e não vê-lo pelo terceiro dia consecutivo, apesar de já ser
mais de dez da noite, parei o carro e fui até a casa a fim de vê-lo, caso
estivesse preso. Da rua, chamei pelo seu dono. Ninguém na casa atendeu, mas,
outro vizinho que retornava de um dedo de prosa na chácara do outro lado da
curva e que eu mal reconheci no escuro, pois havia cerca de três anos que ele
retornara para São Paulo, veio falar comigo e disse que talvez o Juliano já
estivesse dormindo. Eu sorri e expliquei que, na verdade, não queria ver o
Juliano, mas sim o Rex, e ele me perguntou: “Você
não sabe o que aconteceu com o Rex?” Minhas pernas bambearam...
Infelizmente, essa história não
tem um final feliz. Assim como o Rex e outros cachorros são criados soltos, em
casas sem muros e sem portão, há por aqui também pessoas que criam vacas,
cavalos e galinhas soltos pelas ruas. Para os cavalos e as vacas, os cachorros
apenas latem, mas, as galinhas costumam aguçar o instinto de caçador de nossos
lobinhos domesticados e alguns as matam e até arrastam para os seus quintais
para mostrar sua habilidade aos donos. Lugar de costumes estranhos para o
avançado e informatizado terceiro milênio, além de vacas, cavalos, galinhas e
cachorros perambulando pelas ruas, a venda de chumbinho ainda é livre por
aqui... Infelizmente, o lindo cachorro preto e amarelo, mestiço de pastor
alemão e vira-latas, que todas as noites lambia a minha mão e me ajudava a
curar as feridas do coração, foi envenenado e morreu no feriado de 21 de abril.
Chorei por esse cachorro como se
perdera um parente, ao ponto de amanhecer no dia seguinte com os olhos
inchados. Eu amo cachorros, tanto que tenho nove em minha casa, mas, não os
trato como gente e sim como cachorros. Como o Rex, embora não fiquem soltos
pelas ruas, meus cães não têm pedigree,
não frequentam pet shop, tomam banho de mangueira, jamais usam aquelas
humilhantes roupinhas e nem comem comida de latinha, biscoitos em forma de
ossinhos e outras futilidades. Sou consciente de que eles vivem menos que nós e
procuro estar preparada para a sua partida, porém, o que mais me doeu, além do
vazio de saber que nunca mais o Rex correrá na direção do meu carro quando eu
fizer a curva, foi a vergonha que me deu de pertencer à espécie mais feroz e
destruidora deste planeta. Pessoas que em vez de gastar com uma tela para
cercar as suas galinhas, preferem gastar com veneno matando os cães que as
incomodam. Há algumas que abatem também as pessoas que as incomodam...
Antes de morrer, há mais de vinte
anos, minha mãe me disse, no hospital, que não tinha medo da morte, mas que a
sua maior preocupação era não poder mais cuidar de mim. Estranhei isso, pois já
tinha quase 30 anos, morava longe dela, era mãe, tinha minha carreira, minha
independência, mas, ela explicou-me que, de todos os seus filhos, eu era a
única que lhe preocupava porque era muito ingênua e tinha um coração sensível
demais. Ela costumava usar a expressão “com casca e tudo” para se referir às
pessoas mais rudes e o que a fazia sofrer era que o meu coração não criara
casca e ela ainda me disse: “Além de não
ter casca, minha filha, o seu coração fica do lado de fora do peito e só eu sei
o quanto isso pode te fazer sofrer.”.
Minha mãe tinha razão. Hoje tenho
mais cabelos brancos do que ela tinha quando morreu, mas meu coração ainda não
criou casca e temo que nem criará, por isso eu jamais conseguirei entender essa
diferença entre as pessoas; eu jamais conseguirei entender e tampouco aceitar a
crueldade de alguém capaz de envenenar um cão, sobretudo um cão tão lindo,
dócil e inofensivo quanto o Rex, que nunca mais poderá esperar a sua tola amiga
de coração sem casca na última curva da estrada. Que bicho é esse, meu Deus,
que se intitula homem e possui um potencial tão destruidor? Fortalece o meu
coração, Senhor, para que eu também não acabe passando para o número daqueles
que gostam mais de cachorros que de gente porque a cada dia tenho descoberto neles
qualidades e um tipo de afeto cada vez mais raro entre os meus irmãos...
Bonito texto. Lembro que uma das última coisas que minha mãe disse, antes de morrer, foi que sentiria muita falta do meu abraço. E realmente é o que mais sinto falta.
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