sexta-feira, 29 de maio de 2015

Sua casa, minha vida




“Um sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas um sonho que se sonha junto é realidade”(Raul Seixas – Prelúdio)

   O nome dela era Dona Tereza. Já se passaram quinze anos, mas ainda me lembro perfeitamente do seu rosto, dos seus olhos azuis, da cor dos seus cabelos e até da roupa que ela estava usando naquele dia. Essa lembrança não se deve a nenhum privilégio de memória, é que ela foi a primeira pessoa adulta que vi chorando de felicidade e isso é uma coisa que a gente nunca mais esquece.

   Eu tinha acabado de entrar na Caixa e me causou admiração o entusiasmo dela quando fiz a simulação para o financiamento do seu imóvel: uma quitinete no centro de São Paulo, mais precisamente, na Rua Tabatinguera, bem perto da Praça da Sé. Ela custava a acreditar que poderia fazer o financiamento, pois tinha 61 anos e já era aposentada, com uma renda pequena. Cada vez que ia à agência, ela trazia uma novidade: a excelente localização, a simpatia do porteiro, a divisão da kit, que tinha a cozinha e a área de serviço separadas e um ótimo banheiro. Talvez nem precisasse trocar o piso, antigo, mas em excelente estado.


   No dia da assinatura do contrato, ela chegou cedo, antes da agência abrir. Encontrei-a na porta quando cheguei. Era uma senhora muito simples, mas, estava elegante, com um conjunto marrom, provavelmente sua melhor roupa. Quando a agência abriu, ela ficou na minha mesa até a chegada dos vendedores e do corretor. Seu nervosismo era indisfarçável e posso apostar que suava frio. Quando todos chegaram, eu e a gerente os acompanhamos ao andar superior. Os contratos eram lidos e assinados numa mesa redonda com um bonito vaso no centro. Era algo solene que a gerência fazia questão de manter.


   Quando ela recebeu as chaves das mãos do funcionário da imobiliária que intermediara a venda, não resistiu mais. Levantou-se, abraçou-me e chorou copiosamente, molhando minha blusa. Foi naquele momento que eu compreendi porque deixara meu emprego anterior, também numa estatal, para ir trabalhar na Caixa ganhando 40% menos. Ficou claro para mim que, mais que bancária/economiária, eu tinha encontrado a minha missão: ajudar a realizar sonhos.Depois da Dona Tereza, muitos nomes, muitos rostos, muitos financiamentos, muitas emoções, mas nenhuma marcou tanto quanto a dela. Mudei de agência um ano depois e nunca mais a vi, nunca mais soube dela, mas, ainda hoje, seu sorriso e suas lágrimas sobrevivem dentro de mim. Minha carreira teve altos e baixos, alguns percalços, longo afastamento para tratar de um problema de saúde, mas, há seis anos, realizei o meu grande sonho de trabalhar exclusivamente com habitação.Hoje já não tenho contato direto com os clientes, apenas com as imagens digitais de seus documentos, mas, continuo sendo um agente da realização de muitos sonhos semeados Brasil afora. E, agora, numa quantidade exponencial, pois o que há quinze anos demorava três meses para ser feito, hoje fazemos em dois dias. A pessoa entrega seus documentos lá em Ananindeua, no Pará e, dois dias depois, um simples clique meu ou de um dos meus quase 300 colegas de trabalho torna o seu sonho real. Não vejo seus sorrisos e suas lágrimas, não partilho da emoção da assinatura do contrato e do recebimento das chaves, já não sento com eles em uma elegante mesa redonda com um vaso de flores no centro e sim numa estreita baia de uma linha de produção informatizada, porém, tento imaginar a emoção e a alegria vividas por uma infinidade de famílias do Oiapoque ao Chuí.


   Às vezes a qualidade das imagens não é boa o suficiente para que se possam visualizar os rostos das fotos dos documentos, mas é sempre possível adivinhar os semblantes de suas almas. Isso pode parecer um exagero, uma simples figura de retórica, mas, não é. Sou uma mulher de meia idade romântica, irremediavelmente romântica, sei disso, assim como sei que muitos de meus colegas acham nosso trabalho maçante, tedioso e repetitivo e, depois de algum tempo, vários deles até pedem transferência para outros setores da Caixa, normalmente alegando a busca de novos desafios. Para mim, no entanto, não há desafio maior do que este e pretendo me aposentar fazendo o que faço. Também poderia me entediar se apenas analisasse documentos e conformidade operacional, mas, a matéria-prima do meu trabalho é outra, eu lido com sonhos e esperanças, eu ajudo a fomentar a realização deles.Passam pelas minhas mãos desde financiamentos de casinhas muito simples, em conjuntos habitacionais do Programa “Minha Casa, Minha Vida”, que às vezes custam menos de 50 mil reais, até imóveis de mais de um milhão. Não importa o preço da casa ou do apartamento, nada pode superar o valor de um lar. Por isso vale a pena acordar todos os dias às cinco da manhã, deixar o meu próprio sonhado lar, percorrer cerca de cem quilômetros até São Paulo, usando três diferentes conduções, para trabalhar, quando seria bem mais simples e prático tentar uma transferência para Atibaia. Faço isso – e continuarei fazendo – porque a cada financiamento que aprovo, revejo o sorriso, as lágrimas e o tremor das mãos da Dona Tereza, e posso dizer, no silêncio do meu ingênuo coração: “Sua casa, minha vida!”.

Um comentário:

  1. É o que mais sinto saudades da agência é este contato com os clientes. Sempre que tem os multirões de FGTS por motivo de calamidade, passo por momentos de assim, de ver que o meu serviço faz a diferença.

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