Há algum tempo uma
amiga minha namorou um homem cego, ou deficiente visual, como é mais adequado
dizer em tempos de colocações politicamente corretas. No começo, teve alguma
dificuldade sobre como se portar com ele. Na primeira vez que almoçaram num
restaurante, por exemplo, ela ficou em dúvida sobre oferecer-se para servi-lo
ou para cortar o seu bife. Não queria parecer negligente, mas também não
pretendia ser pegajosa e super protetora, temendo que ele se sentisse mal. Foi-se
adaptando e em pouco tempo agia com ele com a maior naturalidade e, como ela é
uma pessoa detalhista e minuciosa, passou a se constituir um prazer para ambos
a maneira como ela descrevia tudo ao redor quando passeavam. Iam a lugares que
normalmente os casais de namorados vão: restaurantes, parques, teatro e ela era
os olhos dele, descrevendo as minúcias de tudo o que via.
Porém, a minha
amiga também possui uma deficiência, mas uma deficiência oculta. A deficiência
dela não podia ser vista por seu namorado, não por ele ser cego, mas por ser
uma deficiência sutil, apesar de avassaladora. A minha amiga sofre de
depressão. A primeira crise que teve desde que se conheceram aconteceu no
departamento de Recursos Humanos da empresa em que ela trabalha. Estava
passando por uma avaliação médica de rotina, quando a sua inimiga oculta se
evidenciou e ela se viu numa desesperada crise de choro, sentindo os dedos
gelados da morte tocarem seu coração e desequilibrarem seu intelecto.
Os profissionais
que a atendiam, por causa de uma licença longa após uma cirurgia, que nada
tinha a ver com problemas emocionais, disseram que só a deixariam sair dali
acompanhada, e direto para um pronto-socorro psiquiátrico. Ela ficou mais
desesperada ainda com isso, sentindo-se péssima e sem chão e não sabia a quem
recorrer. Para complicar, o seu celular ficou sem bateria e os únicos telefones
que ela sabia de cor eram o da irmã, que não estava em casa, e o do seu doce
amado. A psicóloga ligou para ele que, um pouco assustado, tomou um táxi e foi
até o local e depois a acompanhou até um médico, mas deixou-a lá, sozinha,
alegando que precisava voltar ao trabalho.
Ela compreendeu e
até admirou a responsabilidade dele com o seu trabalho. Passou pelo médico,
comprou a medicação prescrita, iniciou uma terapia e tocou a vida, só que um
detalhe a decepcionou muito. O namorado começou a mudar com ela, foi ficando
frio, distante, reticente, até que terminou o namoro alegando que não conseguia
conviver com aquilo, que para ele era muito assustador estar perto de uma
pessoa que não tinha controle das próprias emoções. Moral da história: a
deficiência física, a deficiência visível é mais fácil de aceitar, muito mais
fácil do que a deficiência que se oculta na alma.
Não é possível
culpar o rapaz e nem acharmos que ele deveria retribuir a ela todo o carinho,
cuidado e compreensão que ela teve com a deficiência dele. A maioria das
pessoas age assim com pessoas deprimidas que, até há não muito tempo atrás,
eram consideradas loucas, uma palavra muito mais dura. Mas, independente da
denominação, o mal é o mesmo. Chamar um cego de deficiente visual não faz com
que ele enxergue, da mesma forma, chamar de depressiva uma pessoa que tem um
distúrbio emocional não faz com que ela deixe de ser o que é e nem diminui o
preconceito que ainda existe com aqueles que não conseguem equilibrar as
emoções porque têm uma deficiência neuronal.
É comum
oferecermos ajuda a um cego para atravessar a rua, aprendermos a falar em
Libras para nos comunicarmos com pessoas surdas, empurrarmos uma cadeira de
rodas, mas, aos depressivos nós dizemos: “Você precisa ser forte, você precisa
ter força de vontade, ter mais fé, rezar mais.” E isso só faz com que as
pessoas depressivas se sintam pior, pois, além da sensação de carregarem o
inferno dentro de si, ainda se sentem culpadas por isso. Ninguém diz a um
diabético, a alguém que tem pressão alta, insuficiência renal ou está com o pé
quebrado para ter mais fé e mais força de vontade.
Ainda somos
ignorantes sobre muitas coisas, mas, a ciência e a medicina já evoluíram muito
no conhecimento da doença da alma, tanto que já se eliminou do vocabulário
médico o termo loucura, e também já não se trata as pessoas depressivas como
histéricas ou possuídas pelo demônio. É, sim, uma deficiência oculta e as
pessoas que a possuem lutam muito para ocultá-la ainda mais. Mas, apesar de as
causas e a cura para a depressão e outros distúrbios da mesma ordem permanecerem
desconhecidos, o amor, o carinho e o respeito por quem possui esses distúrbios
ainda é o melhor caminho para que todos convivamos bem, com afetividade e
esperança.
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