domingo, 23 de novembro de 2014

A deficiência oculta





Há algum tempo uma amiga minha namorou um homem cego, ou deficiente visual, como é mais adequado dizer em tempos de colocações politicamente corretas. No começo, teve alguma dificuldade sobre como se portar com ele. Na primeira vez que almoçaram num restaurante, por exemplo, ela ficou em dúvida sobre oferecer-se para servi-lo ou para cortar o seu bife. Não queria parecer negligente, mas também não pretendia ser pegajosa e super protetora, temendo que ele se sentisse mal. Foi-se adaptando e em pouco tempo agia com ele com a maior naturalidade e, como ela é uma pessoa detalhista e minuciosa, passou a se constituir um prazer para ambos a maneira como ela descrevia tudo ao redor quando passeavam. Iam a lugares que normalmente os casais de namorados vão: restaurantes, parques, teatro e ela era os olhos dele, descrevendo as minúcias de tudo o que via.

Porém, a minha amiga também possui uma deficiência, mas uma deficiência oculta. A deficiência dela não podia ser vista por seu namorado, não por ele ser cego, mas por ser uma deficiência sutil, apesar de avassaladora. A minha amiga sofre de depressão. A primeira crise que teve desde que se conheceram aconteceu no departamento de Recursos Humanos da empresa em que ela trabalha. Estava passando por uma avaliação médica de rotina, quando a sua inimiga oculta se evidenciou e ela se viu numa desesperada crise de choro, sentindo os dedos gelados da morte tocarem seu coração e desequilibrarem seu intelecto.

Os profissionais que a atendiam, por causa de uma licença longa após uma cirurgia, que nada tinha a ver com problemas emocionais, disseram que só a deixariam sair dali acompanhada, e direto para um pronto-socorro psiquiátrico. Ela ficou mais desesperada ainda com isso, sentindo-se péssima e sem chão e não sabia a quem recorrer. Para complicar, o seu celular ficou sem bateria e os únicos telefones que ela sabia de cor eram o da irmã, que não estava em casa, e o do seu doce amado. A psicóloga ligou para ele que, um pouco assustado, tomou um táxi e foi até o local e depois a acompanhou até um médico, mas deixou-a lá, sozinha, alegando que precisava voltar ao trabalho.

Ela compreendeu e até admirou a responsabilidade dele com o seu trabalho. Passou pelo médico, comprou a medicação prescrita, iniciou uma terapia e tocou a vida, só que um detalhe a decepcionou muito. O namorado começou a mudar com ela, foi ficando frio, distante, reticente, até que terminou o namoro alegando que não conseguia conviver com aquilo, que para ele era muito assustador estar perto de uma pessoa que não tinha controle das próprias emoções. Moral da história: a deficiência física, a deficiência visível é mais fácil de aceitar, muito mais fácil do que a deficiência que se oculta na alma.

Não é possível culpar o rapaz e nem acharmos que ele deveria retribuir a ela todo o carinho, cuidado e compreensão que ela teve com a deficiência dele. A maioria das pessoas age assim com pessoas deprimidas que, até há não muito tempo atrás, eram consideradas loucas, uma palavra muito mais dura. Mas, independente da denominação, o mal é o mesmo. Chamar um cego de deficiente visual não faz com que ele enxergue, da mesma forma, chamar de depressiva uma pessoa que tem um distúrbio emocional não faz com que ela deixe de ser o que é e nem diminui o preconceito que ainda existe com aqueles que não conseguem equilibrar as emoções porque têm uma deficiência neuronal.

É comum oferecermos ajuda a um cego para atravessar a rua, aprendermos a falar em Libras para nos comunicarmos com pessoas surdas, empurrarmos uma cadeira de rodas, mas, aos depressivos nós dizemos: “Você precisa ser forte, você precisa ter força de vontade, ter mais fé, rezar mais.” E isso só faz com que as pessoas depressivas se sintam pior, pois, além da sensação de carregarem o inferno dentro de si, ainda se sentem culpadas por isso. Ninguém diz a um diabético, a alguém que tem pressão alta, insuficiência renal ou está com o pé quebrado para ter mais fé e mais força de vontade.


Ainda somos ignorantes sobre muitas coisas, mas, a ciência e a medicina já evoluíram muito no conhecimento da doença da alma, tanto que já se eliminou do vocabulário médico o termo loucura, e também já não se trata as pessoas depressivas como histéricas ou possuídas pelo demônio. É, sim, uma deficiência oculta e as pessoas que a possuem lutam muito para ocultá-la ainda mais. Mas, apesar de as causas e a cura para a depressão e outros distúrbios da mesma ordem permanecerem desconhecidos, o amor, o carinho e o respeito por quem possui esses distúrbios ainda é o melhor caminho para que todos convivamos bem, com afetividade e esperança.

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