sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Quando tudo não é o bastante


            Não é incomum passarmos por crises recheadas de desespero, tristeza, sensação de fracasso, de que seguimos pelo caminho errado, que fizemos as escolhas erradas e sofremos as consequências. Isso é plenamente aceitável e compreensível quando estamos com problemas financeiros, não conseguimos saldar as nossas dívidas e elas nos consomem, nos tiram o sono, ou quando temos dificuldades com nossos filhos, desgastes em nossos relacionamentos, insatisfação com o trabalho, problemas de saúde.

            Mas, e quando nenhuma dessas hipóteses é verdadeira? Quando tudo vai bem com as nossas finanças, quando temos tudo o que poderíamos almejar materialmente, filhos saudáveis e bem encaminhados, quando somos realizados profissionalmente, temos histórias de amor bem sucedidas e saúde perfeita e, ainda assim, não somos felizes? O que acontece? O que nos causa a sensação de impotência e até mesmo de fracasso. Será o peso da idade? O medo da morte?

            Estou relendo um livro do rabino americano Harold Kushner, que tem o mesmo título que dei a esta matéria. Ele escreve com base no Eclesiastes, o livro mais pessimista da Bíblia, cujo autor se apresenta como um homem muito rico, com amores bem vividos, filhos criados, realizações sem medida e detentor de muita sabedoria –  provavelmente o Rei Salomão – e, no entanto,  um homem infeliz e atormentado, que diz que o sol nasce para todos e que por conta disso tanto faz ser bom ou ruim, justo ou injusto, honesto ou mau caráter, o fim será o mesmo para todos e conclui que na vida tudo é vaidade e o que aproveita o homem é trabalhar, comer do fruto do seu trabalho, repousar após a fadiga e procurar fazer a vontade de Deus.

            Kushner esmiúça o pensamento de Salomão (ou seja quem for o autor do Eclesiastes) e mostra que a nossa insatisfação, frustração e ausência de alegria se dá pela ausência de significado. Não faz diferença ser culto ou ignorante, rico ou pobre, saudável ou doente, feliz ou infeliz, religioso ou ateu, chega uma hora que, inevitavelmente, somos forçados a nos perguntar o que estamos fazendo aqui, porque existimos e se a nossa passagem mudará alguma coisa na face da terra ou se, após a nossa partida, seremos apenas uma página virada e rapidamente esquecida e substituída.

Costumamos evitar ao máximo essas perguntas. Para que nossa alma se mantenha calada e não nos incomode com questões desse tipo, costumamos anestesiá-la com sucessos, posses, vitórias , conquistas e conceitos impostos. Mas, cedo ou tarde, ela se rebelará e gritará as suas perguntas porque sempre chega um momento em que tudo não é o bastante. Quiçá isso aconteça cedo, quanto antes melhor, pois, por pior que sejam os efeitos dessa crise existencial, depois dela nos sentimos vivos e podemos buscar um real significado para nossas vidas. Este é o privilégio de não morrer jovem: ter tempo para nos fazermos essas perguntas. As respostas... bem, as respostas o homem vem procurando desde os primórdios.

            Hoje, quando escrevo este artigo, a Igreja comemora o dia de Santo Agostinho. Sou uma grande admiradora deste filósofo, teólogo e grande homem. Agostinho teve uma das almas mais inquietas de que se tem registro e deu um bocado de trabalho para a sua mãe, que rezou por mais de 30 anos pela sua conversão. Ele fez de tudo um pouco: foi filósofo, pesquisador, professor, astrólogo, teve amantes e até um filho sem se casar. Tinha uma grande sede, uma busca desesperada pelo sentido da vida, que só se refreou quando ele se encontrou com Deus.

Ele não foi um simples beato que viveu desde o berço envolto numa aura de santidade. Ele foi um homem comum, com uma boa dose de devassidão e desassossego e, mesmo depois de convertido e de ocupar um alto posto dentro da hierarquia da Igreja, nunca negou o seu passado e os seus equívocos. Pelo contrário, fez do aprendizado com seus muitos desvios a via para a santidade. Por admirá-lo tanto, encerro este texto com uma das mais belas orações que ele proferiu, lembrando que, ainda que tudo seja vaidade, o propósito de estarmos aqui é muito especial e sagrado e só teremos paz verdadeira quando entendermos isto. Podemos não ter as respostas, mas, não vale a pena evitar, a todo custo, as perguntas.


            “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz.”

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