terça-feira, 18 de novembro de 2014

Piloto Automático



            Numa tarde fria da semana passada, eu estava voltando de carro de São Paulo para Atibaia, um caminho que faço diariamente há anos, quando, de repente, me deparei com uma espécie de obelisco reclinado, enorme, num canteiro bem no meio da pista. Era de um azul bem forte, escrito em vermelho “Cidade de Guarulhos”. Puxa, pensei, passo aqui todos os dias e nunca vi esse monumento... Ô, ô, ô, passei aqui ontem, ele não foi colocado aí de ontem pra hoje.! Se liga, Isa, você errou o caminho! Bem, não dava pra tentar raciocinar que m... eu tinha feito. A alternativa foi parar no próximo posto, que não era tão próximo assim, e me informar sobre como retornar para a Fernão Dias.
O frentista, muito simpático, me indicou pegar a segunda à direita e depois a primeira à direita para sair na pista contrária. Acontece que entre o posto e a primeira saída tinha uma ruazinha, que contei e acabei entrando na primeira saída achando que fosse a segunda. Conclusão, caí numa pista que demorei um pouco a reconhecer como a Ayrton Senna. Fiquei sem saber onde estava e em que direção estava seguindo, sei que andei, andei, ou melhor, corri, corri, pois a velocidade ali é 120km/h e não chegava a lugar nenhum, me distanciando cada vez mais de minha rota. Até que vi uma placa marrom no alto da pista escrito “Bem vindo a São Paulo. Viva tudo isso!”. Claro, o inusitado da placa turística me fez rir, afinal, “Viva tudo isso!” soou naquele momento como uma deliciosa ironia.

Algumas voltas e curvas depois, estava novamente na minha velha e conhecida Fernão Dias, dirigindo atentamente rumo ao meu lar, doce lar. Por que aconteceu isso? Eu estava dirigindo normalmente, ultrapassando, freando, dando vantagem, trocando marchas, mas, só o meu corpo estava presente nessa ação, pois a minha atenção estava em outro lugar, estava ligado o meu piloto automático. Eu via as lanternas do carro à minha frente, mas, na verdade, o que via nelas era o que estava dentro de mim; naquele momento eu estava à beira da lareira, tomando uma taça de vinho em companhia de uma pessoa querida e o vermelho da lanterna do carro à frente fora substituído pelo reflexo do brilho das labaredas dentro dos olhos que me encantam. É assim que muitos motoristas chegam rapidamente ao céu ou às mãos da equipe de resgate! Distração, mera distração, mas uma distração que pode custar uma ou mais vidas.

Como todo artista, a minha capacidade de abstração é muito grande e normalmente a minha atenção e o meu pensamento não estão onde está o meu corpo. Eu posso estar falando com alguém, respondendo perguntas, executando alguma tarefa no trabalho, faxinando a casa (o que é sempre uma tortura, pois eu começo mil coisas ao mesmo tempo, esquecendo a anterior e fico andando de um cômodo a outro feito barata tonta até dar conta de organizar tudo), sem estar de fato naquele lugar. Por me conhecer tão bem e saber que a minha atividade mental é muito intensa e o meu processo criativo é um fluxo contínuo, mantenho tudo muito organizado ao meu redor. Na minha casa ou na minha mesa de trabalho, as coisas estão sempre impecavelmente em ordem e raramente mudo alguma coisa de lugar porque eu preciso facilitar a vida sabendo o que está onde, senão me perco toda.

Isso acontece só com pessoas que têm sensibilidade artística? Penso que não. Mesmo que com menos intensidade, esse tipo de devaneio pode acometer qualquer pessoa, a diferença é o que fazemos com isso e se não deixamos isso nos prejudicar ao ponto de não prestarmos atenção a coisas essenciais e sermos desrespeitosos com outras pessoas, do tipo que costuma estar presente onde está e pode se ofender com nossas “ausências”.

Mas, é fantástico esse poder ilimitado que todos nós temos de abstrair e entrar num mundo criado por nossas mentes, mesmo que na maioria do tempo tentemos limitá-las com muros criados pelos conceitos que nos são introjetados desde a infância, preconceitos impostos, valores alheios, dogmas, leis, crendices, verdades tidas como absolutas, quando nem são absolutas e nem mesmo são verdades. Algemas criadas para tentar conter o vento, aquilo que não pode ser contido e nem aprisionado: o poder da imaginação.


É claro que, quando estamos dirigindo um automóvel, devemos por freios a esse poder, mas, aceitá-lo como uma dádiva é a forma mais perfeita de conquistarmos a liberdade. É esse poder que constrói e destrói o mundo e cabe a cada um de nós escolher o rumo que devemos dar à nossa imaginação, que tem força de vida e de morte. Tanto é assim que o nosso Mestre nos alertou que, ao olhar para uma pessoa com cobiça, já cometemos adultério. Ele sabia de tudo e conhecia as feras e os anjos que habitam dentro de nós, afinal é o poder da imaginação o que move o mundo.

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