Numa
tarde fria da semana passada, eu estava voltando de carro de São Paulo para
Atibaia, um caminho que faço diariamente há anos, quando, de repente, me
deparei com uma espécie de obelisco reclinado, enorme, num canteiro bem no meio
da pista. Era de um azul bem forte, escrito em vermelho “Cidade de Guarulhos”.
Puxa, pensei, passo aqui todos os dias e nunca vi esse monumento... Ô, ô, ô, passei
aqui ontem, ele não foi colocado aí de ontem pra hoje.! Se liga, Isa, você
errou o caminho! Bem, não dava pra tentar raciocinar que m... eu tinha feito. A
alternativa foi parar no próximo posto, que não era tão próximo assim, e me
informar sobre como retornar para a Fernão Dias.
O frentista,
muito simpático, me indicou pegar a segunda à direita e depois a primeira à
direita para sair na pista contrária. Acontece que entre o posto e a primeira
saída tinha uma ruazinha, que contei e acabei entrando na primeira saída
achando que fosse a segunda. Conclusão, caí numa pista que demorei um pouco a
reconhecer como a Ayrton Senna. Fiquei sem saber onde estava e em que direção
estava seguindo, sei que andei, andei, ou melhor, corri, corri, pois a
velocidade ali é 120km/h e não chegava a lugar nenhum, me distanciando cada vez
mais de minha rota. Até que vi uma placa marrom no alto da pista escrito “Bem
vindo a São Paulo. Viva tudo isso!”. Claro, o inusitado da placa turística me
fez rir, afinal, “Viva tudo isso!” soou naquele momento como uma deliciosa ironia.
Algumas voltas
e curvas depois, estava novamente na minha velha e conhecida Fernão Dias, dirigindo
atentamente rumo ao meu lar, doce lar. Por que aconteceu isso? Eu estava
dirigindo normalmente, ultrapassando, freando, dando vantagem, trocando
marchas, mas, só o meu corpo estava presente nessa ação, pois a minha atenção
estava em outro lugar, estava ligado o meu piloto automático. Eu via as
lanternas do carro à minha frente, mas, na verdade, o que via nelas era o que
estava dentro de mim; naquele momento eu estava à beira da lareira, tomando uma
taça de vinho em companhia de uma pessoa querida e o vermelho da lanterna do
carro à frente fora substituído pelo reflexo do brilho das labaredas dentro dos
olhos que me encantam. É assim que muitos motoristas chegam rapidamente ao céu
ou às mãos da equipe de resgate! Distração, mera distração, mas uma distração
que pode custar uma ou mais vidas.
Como todo
artista, a minha capacidade de abstração é muito grande e normalmente a minha
atenção e o meu pensamento não estão onde está o meu corpo. Eu posso estar
falando com alguém, respondendo perguntas, executando alguma tarefa no
trabalho, faxinando a casa (o que é sempre uma tortura, pois eu começo mil
coisas ao mesmo tempo, esquecendo a anterior e fico andando de um cômodo a
outro feito barata tonta até dar conta de organizar tudo), sem estar de fato
naquele lugar. Por me conhecer tão bem e saber que a minha atividade mental é
muito intensa e o meu processo criativo é um fluxo contínuo, mantenho tudo
muito organizado ao meu redor. Na minha casa ou na minha mesa de trabalho, as
coisas estão sempre impecavelmente em ordem e raramente mudo alguma coisa de
lugar porque eu preciso facilitar a vida sabendo o que está onde, senão me
perco toda.
Isso acontece
só com pessoas que têm sensibilidade artística? Penso que não. Mesmo que com
menos intensidade, esse tipo de devaneio pode acometer qualquer pessoa, a
diferença é o que fazemos com isso e se não deixamos isso nos prejudicar ao
ponto de não prestarmos atenção a coisas essenciais e sermos desrespeitosos com
outras pessoas, do tipo que costuma estar presente onde está e pode se ofender
com nossas “ausências”.
Mas, é
fantástico esse poder ilimitado que todos nós temos de abstrair e entrar num
mundo criado por nossas mentes, mesmo que na maioria do tempo tentemos
limitá-las com muros criados pelos conceitos que nos são introjetados desde a
infância, preconceitos impostos, valores alheios, dogmas, leis, crendices,
verdades tidas como absolutas, quando nem são absolutas e nem mesmo são
verdades. Algemas criadas para tentar conter o vento, aquilo que não pode ser
contido e nem aprisionado: o poder da imaginação.
É claro que,
quando estamos dirigindo um automóvel, devemos por freios a esse poder, mas,
aceitá-lo como uma dádiva é a forma mais perfeita de conquistarmos a liberdade.
É esse poder que constrói e destrói o mundo e cabe a cada um de nós escolher o
rumo que devemos dar à nossa imaginação, que tem força de vida e de morte.
Tanto é assim que o nosso Mestre nos alertou que, ao olhar para uma pessoa com
cobiça, já cometemos adultério. Ele sabia de tudo e conhecia as feras e os
anjos que habitam dentro de nós, afinal é o poder da imaginação o que move o
mundo.
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